A poesia é um estado de luto ou o transe de Vera Lúcia de Oliveira

 Por Rudinei Borges

 A poesia é um estado de transe, livro de Vera Lúcia de Oliveira, lançado pela Portal editora, concerne num ritual, quase abrupto, de luto – agonia pela perda. O título despista o leitor, mas já nas primeiras linhas o chamariz da palavra transe, termo tão em voga,  é ofuscado por versos como: “a casa se enche de tudo quanto/Deus carrega consigo no seu útero”. A pretensa espiritualidade é logo banida, porque a questão central da poesia de Vera Lúcia é a morte, o amor, o ódio, o mundo e a vida. Trata-se, sem exageros, de uma bíblia concisa. A bíblia das dores do mundo – para lembrar Schopenhauer. A poeta engana a todos. A leveza e a precisão de suas palavras parecem esconder as mazelas mais cruas de sua denúncia: “(…) uma angústia/dentro rasgava o pulmão”. Aliás, Vera Lúcia é uma poeta cruel e destemida. E seu livro, para início de conversa, é uma lição de maturidade poética capaz de arrebatar até mesmo o leitor mais desatento. Ninguém sai o mesmo depois de deparar-se com confissões como aquela que inicia o poema Surdez: “tive duas mãos e não amei nenhuma”. Erra quem entender a palavra confissão como um aglomerado de desafetos apresentado em versos. O caráter confessional da poesia de Lúcia de Oliveira está pautado num alcance existencial-filosófico considerável. E nisto, encontra-se o vai e vem trabalhoso da engrenagem poética. A poeta soube cortar palavras e diz muito com uma economia só vista em Paulo Leminski e Adélia Prado. O menor poema tem três versos e o maior apenas vinte. O título do menor, Silêncio, talvez elucide as pretensões da poeta nascida em Cândido Moura, mas que hoje reside na Itália. As pausas que compõem a poesia de Vera Lúcia lembram o silêncio das meditações budistas, do sono e, em especial, da morte. A poeta de versos curtos é capaz de provocar sugestões inúmeras: “se peso sou/se não peso ninguém/percebe que sou”. Ou “não posso parar/sou como a corda/de um varal que a noite/tange retesa solta/até que retorne/à dimensão original”. O mistério é o cotidiano. A vida é a soma das pequenezas: “o mistério está na aragem/não carrega vozes/o mistério está na cozinha/nas panelas limpas/nas tampas penduradas nas hastes/na goteira incessante da pia/o mistério está na respiração macia/de cada coisa em seu nicho/esperando a hora de ser útil”. O silêncio – mudez e surdez – compreende o mistério anunciado em A poesia é um estado de transe. Trata-se do silêncio do subsolo, onde residem as raízes, as sementes e os corpos mortos. Mas é também o silêncio do útero, local onde os filhos são gerados sem que pedissem às mães – o silêncio da noite, das sombras e, por final, da própria escuridão.

Entrar no útero é crescer lá dentro

A palavra útero tem dimensão peculiar e está associada a palavra dentro, que aparece vezes diversas como se configurasse uma oração, uma denúncia – como se houvesse necessidade urgente de compreensão. “Só dentro me placo” é o que escreve a poeta para referir-se à vontade de penetrar no osso de tudo o que Deus gerou. Entretanto, dentro também é a morte, grande útero que finda a vida: “ela sabia que na hora chegada/do dia que Deus tinha determinado/dentro da grande língua da terra/ela teria que entrar”. Dentro designa as palavras que têm cicatrizes – apego, parto e tempo: “dentro elas são de madeira/dentro elas se impregnam”. Em oposição à palavra fora, dentro é o lugar de encontro, onde podemos ouvir a nós mesmos. Fora é a residência da perda e do barulho. Em O coração das sementes, um dos poemas mais interessantes do livro, a poeta vai à profundeza da vida, através das árvores, sugerindo encontrar o sentido verdadeiro para a existência. Ela afirma: “por dentro da polpa de um fruto maduro/penetrava em tudo o que é coisa”. Porém, a conclusão da poeta não deixa escapar a sua lucidez que em alguns momentos confunde-se com desalento. “(…) dentro da vida/há morte” ou a constatação “(…) o moinho dentro/ralando um milho sem piedade”. Dentro, na poesia de Vera Lúcia, concerne em “gemer a fome cuspir a raiva/de ter sido gerado não do jeito/que ele tinha sonhado mas do jeito/que o tinham feito”. É o “antro de uma caldeira/que arde dentro da boca/as lascas de uma ferida”.

Sua fome é minha fome

Noutros momentos, a poeta afirma haver uma espécie de fome que brama dentro noite e dia. Uma fome inominável que não se sabe dizer o que é. Que fome é esta? O que Deus carrega consigo no útero? Que é esta coisa que falta que as pessoas não sabem quando perderam? Que é o grande abarrotamento no grande silêncio de fora? Trata-se do desejo de raspar a casca da terra por dentro das sementes, de penetrar em tudo o que é coisa e, como Aleijadinho, recriar o mundo. É preciso gerar nas entranhas a razão para o voo, lembra a poeta. No útero, subterrâneo onde reina a morte, reina também a vida. A liberdade é construção humana. O ser humano precisa vagar no arcano até perceber a proporção correta de cada signo que revela o mistério, como propõem os versos de Há uns que são engenheiros.

Rosnar para o mundo

O lamento da fome e a impossibilidade de gerar razões para o voo levam a poeta a compreender o mundo com um grau elevado de pessimismo. No poema O verdugo, Deus é aquele que castiga a poeta desde a sua vinda ao mundo. Aliás, o mundo não dá trégua. Sofre-se desde o princípio. Deus e o mundo parecem configurar a mesma pessoa ou questão, a mesma decadência: “(…) passo as noites ouvindo/um ruído de traças comendo o mundo”. No poema O Aleijadinho, a poeta indaga: “qual mutilação nossa/espelha Deus?”. Já em À nossa imagem, Vera Lúcia de Oliveira admite o seu desencanto: “chove miudinho/o mundo está lavado/em toda sua dimensão/os vidros se embaçam/a hora espera o arco-íris/enquanto encerro a casa/com obstinação/retiro a louça do lugar/reordeno o mundo da casa/à nossa imagem e solidão”. Diante deste quadro, resta acreditar nas palavras consoladoras do poema Grão: “mas saíste do amor de uma noite/em que Deus habitou meu útero”. Parece haver alguma chance para Deus e o mundo no universo sôfrego de A poesia é um estado de transe.

O amor é a maior causa de morte

Em suas teorias sobre o amor, a poeta dispara: “o amor é a maior causa de morte”. E explica a existência de quatro tipos de amor: 1. o dado de graça; 2. o dado de raiva; 3. o dado de ódio; 4. o não dado. Este último, a falta de amor,  é a maior causa de morte da humanidade. No poema Esmola, a poeta que cresceu na cidade de Assis, em São Paulo, define a relação paradoxal entre ódio e amor. E afirma: “só o ódio é um sentimento humano”, porque para ela “o amor não deixa rastro, o amor não/se imprime à sangue na memória”. E outra vez põe Deus/mundo em questão: “o ódio é um fogo que a gente alimenta/com o nosso desejo de ser um pouco como Deus/e não ter que esmolar o amor para sobreviver”. Em outros poemas, o verbo amar aparece conjugado no passado: “amei você com fome de luz” e “amava (…) o rendilhado das frestas na penumbra”. Não há nada que “sobeja do que já foi esquecido”. O amor não interessa mais. Nem Deus. Nem o mundo. O amor é aquilo que gera a fome que rói e entristece a poeta.

Pisar o chão como num luto

Tudo volta à terra, insiste a poeta paulistana. Não há saída. “Sei que o corpo pede terra”.  Com o anúncio da morte e com a própria morte apoderando-se das coisas e das pessoas, mostrando-se maior que Deus e o mundo, resta carregar o luto, cultivá-lo em alguma parte do corpo. É preciso saber falar com a morte, amar com a vida. É preciso encarar “o monótono jeito de carregar um luto”, uma perda, porque – por vezes – as pessoas veem nos dizer que somos nós que estamos mortos, como no poema Fiel. Por final, resta matutar para onde vão as pessoas engolidas pelo escuro das linhas quadriculadas. É possível darmos com a resposta do pai da poeta, no último poema de A poesia é um estado de transe: “viraram pássaros (…) iam aprender no voo/o resto da geometria”. As pessoas morrem porque não sabem voar.

+ Livro: A poesia é um estado de transe

+ Autora: Vera Lúcia de Oliveira

+ Editora: Portal

+ Número de páginas: 64

+ Ano: 2010

Onde comprar:

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